O longa é dirigido por Felipe Fernandes, que já atuou assistente de direção de grandes filmes brasileiros como Bacurau e Aquarius, Rio Doce é sua estreia em longa-metragem, o diretor contava em seu currículo apenas com curtas, um exemplo é “O Delírio é a Redenção dos Aflitos” (2016) que inclusive foi premiado. Em Rio Doce, acompanhamos Tiago (Okado do Canal) que descobre estar diante de um drama familiar quando é contatado por uma irmã por parte de pai que não sabia da existência.
É nesse contexto que a trama vai se desenvolvendo, primeiro acompanhamos o protagonista e descobrimos algumas coisas a seu respeito, ele possui uma vida financeira delicada, possui várias dívidas e por conta disso tem a sua luz cortada. Criado somente por sua mãe, Tiago tem a ausência de uma figura masculina e precisa lidar com o abandono. Apesar disso, podemos perceber o amor e acolhimento proveniente de sua família. Outro ponto importante que a história faz questão de mostrar é o quanto Tiago parece apático diante das situações do seu cotidiano, quase como se tudo fosse um enorme vazio, todo esse peso emocional é revelado ter um grande impacto em sua vida e percebemos que isso é um reflexo de tudo o que o levou até ali.
A música “As vezes dói ser forte” cantada por Okado e Zord traz em uma estrofe o seguinte trecho “Queria poder mudar, mas eu não consigo… Engula o choro que homem não chora, mantenha a postura e imponha respeito. Não abra os dentes para todos lá fora. Ao seu redor todos são suspeitos”. Então, a música tema do filme parece representar muito bem essa realidade da qual o protagonista está inserido. Como um homem negro, Tiago não pode demonstrar fraqueza, não lhe e permitido chorar e crescendo em uma periferia e ainda mais forte essa desconfiança por tudo e todos. É nesse momento, que percebemos que essa apatia, essa falta de sorrisos e emoções e a forma como ele aprendeu a ser ou foi imposto a ser. É um retrato da masculinidade tóxica.
Todos parecem ser inimigos porque a realidade que o cerca não parece se mostrar o contrário, viver em sua maioria das vezes parece uma eterna sobrevivência. Tiago leva a dor da negligência e abandono consigo, acaba descobrindo a existência ou a não existência mais do pai depois de muitos anos e tem que lidar com uma perda que não é exatamente uma perda, como sofrer por alguém que não se conhece e como ao mesmo tempo não sofrer pela sombra do que nunca teve e com isso percebe-se que Tiago começa a ver a si mesmo na filha e a oportunidade de dar algo que nunca teve na presença de um pai, mesmo que não seja perfeito. Essa é a construção que leva ao final da trama, de um pai que quer mudar, que não sabe muito como, mas que precisa fazer alguma coisa de diferente para que sua filha não tenha o mesmo destino que ele mesmo teve. Mas, tudo isso é feito de forma gradual, durante todo o desenvolvimento da trama esse amadurecimento vai sendo progressivo.
É interessante analisar o quanto esse drama familiar não é tão desconhecido por muitas famílias brasileiras. É uma história que é interpretada por um personagem, mas este é real. Vivendo uma situação que se faz presente na vida de muitas pessoas, a paternidade é muito conturbada, principalmente, levando em conta a taxa de abandono. Em 2020, quase 6% das crianças nascidas foram registradas somente pela mãe. É um número expressivo que impacta a forma como essas crianças irão se tornar, lidar com o abandono, com a ausência de algo muito difícil e delicado. Vemos isso em Tiago, que mesmo conhecendo essa realidade não consegue se desvencilhar dela ao criar sua filha e acaba por reproduzir o mesmo mal que sofreu. Porém, diferente de seu pai, Tiago decide tentar ser o pai que consegue ser, mesmo que não seja perfeito. Tiago assim reescreve seu relacionamento com a filha, enquanto ainda é tempo. O trabalho do roteiro somado ao da direção é muito sensível e cuidadoso, em nenhum momento se faz algum juízo de valor sobre a história, apenas a representa de fato como ela é, complexa.
Rio Doce se destaca por trazer situações cotidianas e vivenciadas por grande parte da população brasileira com muito respeito, por contar a história de pessoas que não tem esse espaço e principalmente por ter o cuidado de mostrar que nem tudo é tão preto no branco. Muitas vezes, a gente não sabe a realidade do outro para estar julgando. E, é ainda mais sensível a conclusão da história que se encerra com a sensação de esperança, uma sensação agridoce, as dificuldades enfrentadas pela disparidade social ainda vão estar lá, mas Tiago percebe, ainda assim, que é possível tentar tornar-se melhor para que as dificuldades que enfrenta não alcancem a sua filha da mesma maneira que o alcançou. Percebe que a sensação que tinha de estar alheio e sem controle sobre sua vida poderia ser substituída pelo menos pela motivação de fazer algo por sua filha.
Fundadora e Editora-Chefe. Virginiana e defensora da terra.
Um pouco Lorelai demais, não só na quantidade exagerada de café, mas também na capacidade de falar muito em pouco tempo. Whovian apaixonada. É possível me encontrar, entre um salto temporal e outro, em Doomsday ou em qualquer biblioteca ou cinema do mundo.